sábado, 21 de março de 2015

POESIA DA NÃO POESIA

Prefiro escrever a não-poesia. Não que ela não possua magia.
Nem que contenha o cântaro onde se bebia o conhecimento
dos antigos.
Não quero escrever esta poesia burguesa. Esta dos engravatados,
dos almofadinhas, dos que se engalanam com uma cervejinha de final
de semana,
sem perceber que é necessário dar um fim à lama, à difâmia,
à covardia com aqueles que erguem o palmo a palmo de cada dia.
Não quero falar dos palácios com telhas coloniais aureleando as
orlas marítimas,
preciso me concentrar nos cacos de telhas quebradas, jogados ao longe, expulsos do paraíso, como os frutos podres que caem das árvores e vivem o mesmo drama adâmico, pisoteados e sorvidos pelos vermes. Aprender a lição das horas esquecidas nos umbrais das janelas. Conhecer a forma velada de ler nas folhas secas, nos papelzinhos picados sobre a avenida, nas nuvens desaparecidas, as histórias que não foram contadas.
Não tenho necessidade da falar da beleza de minha infância, nem dos doces de coco sobre as toalhas rendadas de parabéns pra você,
quero me redimir com as andorinhas tombadas sobre minhas setas infalíveis,
de seus pescoços sangrando sob a minha inconsciência infantil,
para onde elas foram, por que às vezes revoam em meus sonhos noturnos e acordo assustado,
e eu ainda vou escrever poemas para os pássaros?
Vou relatar dos ninhos trançados e dos ovos branquinhos esperando o explodir de suas cascas?
Prefiro por isto falar da não-poesia. De Regina, por exemplo, por que se foi tão cedo?
Prefiro ter consciência de alguém que nunca vi, um não-alguém aqui. Um que não me deu bom dia, porque não atravessou meu dia, mas que com certeza, viveu em algum lugar, alguma rua, alguma casa, sofreu, chorou, dormiu, acordou, morreu.
Do simples, do mais simples, da pura verdade onde quero extrair o supra-sumo da poesia.
Não que ele não tenha sua elegância, não possua magnitude, mas porque ele está mais perto do centro de todas as atrações. Um centro não matematicamente traçado no círculo. Um centro que ancorou na periferia. Não quero nenhum prêmio. Se quiserem me dar alguma honraria, tenham consciência dos que foram banidos, do que foram expulsos, dos que viveram sozinhos a dor da solidão, dos que foram até ao fundo do poço e se banharam em seu lodo e com ele construiram o outro lado da face, para que quando saissem ao sol, pudessem pelo menos oferecer um sorriso novo, um broto de perdão, não com o coração totalmente aberto no peito, mas ainda com as chagas abertas no peito mostrando o coração.

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